(OS TIPOS DE PROPOSIÇÕES, CV & JUSTIFICAÇÃO)
(24.10.2008)
[§26] Kant, na introdução à sua Crítica da Razão Pura, procedeu a uma qualificação sistemática dos vários tipos de proposições possíveis. Pela abrangência da sua análise, servir-nos-emos das distinções traçadas por Kant nessa sua obra.
| A PRIORI | EMPÍRICOS ou A POSTERIORI | ||
ANALÍTICOS | "In all judgements in which a relation between subject and predicate is thought, [...] this relation is possible in two ways. Either the predicate B belongs to the subject A as something which is (covertly) cointained in the concept A [...] nothing is added through the predicate to the concept of the subject, and the concept is only analysed and broken up into its constituent concepts which had all along been thought in it (though confusedely)..." (B10-11; 43) | "...it would be absurd to found an analytical judgement on experience, because, in order to form such a judgement, I must not step outside my concept, and I need not appeal to the testimony of experience." (B11; 44) | ||
SINTÉTICOS | §34 onwards | "Empirical judgements, as such, are all synthetic." (B11; 44) |
[§27] Por ora (mesmo se se trata de um «por ora» assaz curto), deixaremos de parte os P-SA (proposições sintético-apriorísticas), contra cuja existência alguns, sem grande sucesso, pensamos, tentam argumentar. Visto que P-AE (proposições analítico-empíricas) são impossíveis pela própria definição de «proposição analítica», resta pois analisarmos P-AA (analítico-apriorísticas) e P-SE (sintético-empíricas). No nosso Trilema, P parece poder pertencer a {P-SE}, isto é, todo o conjunto de P-SE possíveis. De facto, sendo proposições que assentam na experiência, pode-se, pelos mais variados métodos (o génio maligno de Descartes, e.g.), questionar a proposição imediata em que assentam, a saber: que existe um mundo físico & material exterior a S.
[§28] Note-se que não afirmamos que tal mundo não exista: pura e simplesmente constatamos como toda a P-SE, se se perguntar pela sua justificação, terá como uma das suas premissas a existência do mundo exterior, premissa essa que pode ser questionada. Se mais tarde se consegue provar ou não a existência desse mundo não é para aqui chamado, não porque isso não seja relevante para o nosso argumento - tudo o que pretenda poder provar-se é, obviamente, importante para nós, pois, a confirmar-se tal pretensão, triunfaria sobre o Trilema -, mas tão simplesmente porque essa «justificação» ou seria circular (confirmando-se (2)) ou então encaixaria numa das duas possibilidades de refutação de (1) apresentadas quer em §16 quer em §17. O que interessa é que, se P1 for do tipo P-SE, então está claramente sujeita ao Trilema e só se livrará dele se conseguirmos provar que o Trilema em si está errado.
[§29] Avancemos agora para o estudo das P-AA. Argumentaremos que estas são proposições radicalmente diferentes das anteriores. Parece-nos que a este tipo de proposições não se pode pedir justificações, pela simples razão de que elas não têm, a nosso ver, qualquer relação com o real (ora aquilo que não pretende ser verdadeiro - que na enunciação do Trilema representámos como (a) -, e ser verdadeiro significa aqui ter correspondência no real[1], como pode sequer pretender poder ser justificado?). Tentemos explicar isto.
[§30] P-AA são normalmente assimiladas a definições, que constituem talvez o mais feliz e straightforward exemplo do que é uma P-AA. Assim, consideremos as seguintes proposições:
P-AA1: Um quadrado é uma figura geométrica de quatro lados isométricos.Seríamos inicialmente tentados a rotular todas estas afirmações de verdadeiras ((a), não esqueçamos). Mas (a) significa, de acordo com a definição simples dada em §29, ter uma relação com o real. Ora nenhuma destas proposições tem uma relação com o real: são meras definições, usos da linguagem. Se eu dissesse
P-AA2: Um anão é um homem pequeno.
P-AA3: Um viúvo é um homem cuja mulher morreu.
P-AA1a: Um quadrado é uma figura geométrica de três ângulos que perfazem 180º.também isto são proposições tão «verdadeiras» quanto as anteriores, o que é o mesmo que dizer que não são verdadeiras de todo. P-AA2a só é «falsa» (note-se as aspas!) na medida em que se estabeleceu (note-se o itálico!) que P-AA2 era «verdadeiro» (outra vez as aspas). O estabelecimento por consenso, no entanto, não é, lamentamos informar, garantia de verdade/mentira; com toda a certeza, neste caso, não o é.
P-AA2a: Um anão é um homem enorme.
P-AA3a: Um viúvo é um homem cuja mulher tem a mania de andar ao pé cochinho de cócoras.
[§31] O que é necessário entender é que estamos perante definições. "Rosa" é um termo pelo qual nos referimos regra geral a um objecto, que acontece ser uma flor, normalmente encarnada, com espinhos e outras coisas que, quando vemos uma, se nos pedem que identifiquemos o que vemos, responderemos: «rosa». Porém, pode amanhã a rainha resolver promulgar um édito de acordo com o qual o objecto anteriormente conhecido por "rosa" passará a ser, doravante, chamado de "macaquinho". A ideia não é disparatada: aconteceu pelo menos duas vezes, que eu tenha conhecimento: em Portugal e na Oceânia. Em Portugal, aboliu-se a palavra "vermelho", substituída por "encarnado" (ao que obrigam os comunas e dá na telha ao salazar!) e, do mesmo modo, a outra senhora definiu que "usocapião", que devia ser masculino, como diz o instinto, seria, na realidade, feminino, género que guarda até aos dias de hoje. Na Oceânia, desenvolveu-se toda uma novilíngua com o objectivo explícito (e bem conseguido) de controlar ainda mais as pessoas, em que conceitos como "mau" foram erradicados (porque o Grande Irmão só pode ser "bom"). Ora, a realidade, tanto quanto nos é possível saber, tanto quanto o considera o senso comum, e tanto quanto a maioria dos filósofos pensa (poderão ter duvidado da existência dela, mas terá algum duvidado do que eu agora vou dizer? Penso que não - o leitor que me indique algum, se conhece, por favor: não quero fazer mentiras); a realidade, dizia, não é algo que a rainha possa decidir por decreto: existe e impõe-se sobre nós, incapazes de lhe resistirmos (posso fechar os meus olhos, mas continuo a sentir-me); ela é, para utilizar a terminologia cartesiana (Meditações, III.38), uma ideia (ou mais que uma ideia) adventícia, isto é, ela vem até mim. E nisto, por exemplo, difere radicalmente de qualquer P-AA. Assim, P-AA1a pode ser «verdadeiro» (aspas!) se eu definir "quadrado" da maneira apresentada (e, já agora, disser que "triângulo" é uma figura com quatro lados isométricos). P-AA não têm nenhuma relação directa com o real: são apenas maneiras convencionais (isto é, emergem por convenção) de nos referirmos ao real. No fundo, estamos perante a lembrança de Magritte: ceci n'est pas un pipe. Um cachimbo pintado não é um cachimbo, da mesma maneira que o termo "cachimbo" não é um cachimbo nem com o objecto físico em si mantém qualquer contacto que não um meramente convencional e arbitrário (a não ser que sejamos cratilistas - os meus heterónimos, de uma maneira geral, são-no: eu, ortónimo, condenado à Filosofia, não).
[§32] Tomemos agora a seguinte proposição:
P-AA4: Os olifantes são paquidermes quadrúpedes.Para além da proposição ter um predicado tautológico ("paquidermes" implica que sejam "quadrúpedes", é como que uma P-AA dentro da P-AA maior, a P-AA4 - mas ignoremos isto, para aqui sem interesse, por favor), a maioria das pessoas, confrontada com esta afirmação, diria que ela é - verdadeira! O ponto de exclamação serve para exprimir o espanto de ver gente a dizer que é «verdadeira» uma afirmação sobre um ser d'O Senhor dos Anéis. Confrontadas com a proposição:
P -AA4a: Os olifantes são paquidermes bípedes.Responderiam que a proposição era falsa. Que se use os conceitos de «falso» e «verdadeiro» para algo que, para começar, nem existe, deve-nos fazer no mínimo suspeitar da propriedade de os aplicar a proposições desta natureza, que é exactamente o que temos estado a tentar provar. Da mesma maneira, ridículo seria exigir uma justificação, (b), de porque é que P-AA4a é falsa, (~a). P-AA4a só é «falsa» em virtude de eu ter tomado P-AA4 como «verdadeira». Convenção, tudo é convenção, estou convencido. O que significa aqui «falso» ou «verdadeiro»? São conceitos usados com ambiguidade, mais que isso, com falta de propriedade, pois definimos «verdadeiro», em §29, como aquilo que mantem uma relação - afirmativa, acrescentamos agora - com o real. São brincadeiras linguísticas como estas que, levadas a sério, sem serem discriminadas filosoficamente, permitiram essa coisa peregrina que é o argumento ontológico a favor da existência de Deus. Dicker (1993: 169-174) mostra isto muito bem, trabalhando a distinção de Carnap entre material mode of speech (MMS) e formal mode of speech (FMS). Todos os exemplos de P-AA que vimos até agora, arriscamos mesmo dizer quaisquer exemplos de P-AA foram e serão sempre no FMS (por falta de tempo e porque apenas serviria para chegar às conclusões já enunciadas, não explicitamos aqui a distinção entre MMS e FMS - mas também a ela, em princípio, não recorreremos mais).
[§33] Podemos pois afirmar que P-AA estão para lá de qualquer justificação, pelo facto de que seria absurdo tentar justificar o que quer que está para lá da verdade ou mentira. Significa também que {P-AA} (a sequência de todos os P-AA possíveis) não é uma materialização razoável de P1. P1 nunca fará parte de {P-AA}.
[§34] Resta pois agora considerar as P-SA. Estes são proposições, de acordo com Kant, que "turn and twist our concepts as we may, we could never, by means of the mere analysis of our concepts and without the help of intuition" chegar a elas (B16; 47). Kant apresenta alguns exemplos. Consideremos o seguinte, sobre o qual, por sua vez, nós trabalharemos:
That the straight line between two points is the shortest is a synthetic proposition. For my concept of straight constains nothing about quantity, but only a quality. The concept of shortest is, therefore, entirely added, and cannot be extracted from the concept of a straight line by any analysis whatsover. (B16; 47)Na proposição «Uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos no espaço» encontramos duas características que, argumentaremos, conferem a P-SA um estatuto especialíssimo.
[§35] A primeira dessas características é a necessidade. Esta foi também identificada por Kant: "Now, experience indeed teaches us that something is so or so, but not that it cannot be otherwise. Firstly, then, if we have a proposition which is thought in conjunction with its own necessity, we have an a priori judgement; and if, besides this, it is not derived from any proposition except onde which has also the validity of a necessary proposition, we have an absolutely a priori judgement." Que «uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos no espaço» não é algo que pudesse não ser assim - tem de ser assim. Isto, de alguma forma, aproxima P-SA de P-AA, na medida em que coloca P-SA para lá da possibilidade de justificação: não se justifica o que é necessário. O ser necessário é o critério último de justificação per se. Em última análise, justificar que «Eurídice morreu» é provar que isso é necessário, que não pode não ser assim. A necessidade é o ser assim e apenas assim (o ser ⇔).
[§36] À segunda das duas características das P-SA prometidas em §34, chamaremos de adventismo, isto é, a capacidade de advento, de vir até. Que «uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos no espaço» é algo que se impõe sobre mim, algo que, para usar a brincadeira de §31, a rainha não pode mudar. Eu posso mudar os termos "linha recta" ou "pontos" (chamar, por exemplo, à "linha recta" "linha vrum-vrum-vrum" e aos "pontos" "miame-miame"), mas a ideia que a proposição exprime mantém-se inafectada por esse make-up linguístico-analítico. Seria tentador afirmar, então, que «uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos no espaço» é uma proposição auto-justificada, do tipo das que se especularam em §17. Porém, a nossa ver, mais do que auto-justificada, é uma proposição hetero-justificativa: P-SA justificam-se perante o outro, elas vão-se justifiar ao outro (que é S), vindo até ele. Há aqui uma clara analogia com o próprio ser humano, que é persona, etrusco para máscara: o homem está num teatro, num palco para ser visto, com um público que o reconhece. O homem é o πολιτικὸν ζῷον de Aristóteles (Pol. 1.1253a2), o animal social, que se move e compreende em sociedade, nasce e é baptizado, aceite na comunidade, dão-lhe um nome: ninguém se chama a si. Da mesma maneira, a verdade não se chama a si (não se auto-justifica), antes vai aos outros, que a reconhecem (hetero-justificação). Mais do que perante uma epi-fania (literalmente, algo como as coisas que brilham aqui), estamos perante uma pro-fania (as coisas que brilham para diante), não uma manifestação aqui, mas uma manifestação para ali, para o outro.
[§37] Da adopção do adventismo como critério de verdade, não advém - como muitos possam estar já talvez a pensar - que o mundo exterior exista necessariamente. Descartes, neste aspecto, poderá ajudar:
But my hearing a noise, as I do now, or seeing the sun, or feeling the fire, comes from things which are located outside me, or so I have hitherto judged. [...] Then again, although these ideas do not depend on my will, it does not follow that they must come from things located outside me [...] this is, after all, just how I have always thought ideas are produced in me when I am dreaming. " (Meditações, III. 38-9)As impressões que me chegam e eu atribuo ao mundo exterior, elas sim, são com toda a certeza verdadeiras/adventícias. Não chegam, porém, para negar a ideia de que posso estar no Matrix. Dirão alguns que a ideia de Matrix já pressupõe a existência de um mundo real, mesmo se é um mundo real ao qual eu não tenho acesso. Seria aqui no entanto necessário argumentar que as impressões adventícias que permanentemente nos chegam e atribuímos a um mundo exterior; seria necessário provar, dizia, que elas necessariamente obrigam à existência de uma realidade exterior, de facto. Talvez assim seja, mas, porque esse não é o assunto do nosso enquiry e não vemos como determiná-lo possa, ou não, contribuir significativamente para a questão que aqui nos ocupa - o Trilema de Agripa -, esse será um caminho que aqui não vou percorrer. De dizer, apenas à laia de curiosidade, que sim, acredito num mundo exterior, mesmo se acredito também numa forma de matrix chamada kantianismo, cujo credo básico é a diferença entre númeno e fenómeno. Reconhecer como necessária a existência de uma realidade exterior a S (projecto que até nos parece assaz fazível, mas em que aqui não embarcamos) em nada alteraria o dito em §27 e isso é o que nos interessa, de momento. Proposições SE - e todas as proposições sobre o mundo exterior são necessariamente PE (é isso que significa "empírico") continuaram a poder ser legitimamente questionadas e sujeitas ao Trilema (veja-se abaixo): o que pode suceder é que, a dada altura em {s1}, se chega a uma proposição que postule a putativa (mas, vá lá, bastante provável) necessidade de existência de uma realidade exterior. A regressão infinita, (1), seria quebrada pela aplicação da teoria fundacionalista, refutação do Trilema prevista em §17. O que aqui se quer dizer, contudo, e com isto fechamos e resumimos o parágrafo é que, por um lado, aceitar o adventismo como associado à verdade não significa aceitar de imediato a realidade exterior, por outro lado, também não significa negá-la, mas tão somente que todas as proposições que se lhe referem, P-SE, estão sujeitas ao Trilema: ora este post é precisamente sobre que P1 é esse que inicia {s1}, qual a sua natureza.
[§38] De tudo quanto falámos acima percebe-se que a verdade está profundamente ligada à justificação. Não podia ser de outro modo: tudo o que é verdadeiro é justificado - poderá é suceder que S não seja capaz ou de apreender essa justificação (devido à sua finitude) ou de, sendo capaz, a reproduzir ou descobrir. Justificar é provar que é necessário. Kant diz que a necessidade não é própria das P-SE, mas é. Se é certo que a mesa em que escrevo podia não estar aqui, o certo é que está - portanto é necessário que esteja, porque está, de facto. As coisas podiam não ser como são, mas sendo como são, é necessário que o sejam (ou não o seriam!). Se o conceito de justificação foi dado como «o ser ⇔» (isto é, «o ser se e apenas se», comummente chamado necessidade), analisando melhor a definição reparamos que nela está já contida a verdade, que é «o ser», aquilo que é (que pode até ser o que não é: os predicados negativos podem ser sempre reformulados positivamente: «não é um cavalo» significa «é um não-cavalo», em que «não-cavalo» designa tudo excepto um cavalo). Verdade e justificação são conceitos enrolados como dois amantes. Toda a verdade é justificativa; toda a justificação correcta chega a uma conclusão verdadeira.
[§39] «A Eurídice morreu» não é necessário, pelo menos directamente. Pode ser que Eurídice tenha de facto morrido, mas a necessidade disso não emana da proposição per se, mas só de isso ser ou não verdadeiro: algo que a proposição, por si, não deixa saber. De facto, pode haver uma gigantesca cabala contra mim, para em fazer crer que Eurídice morreu. Para quem anda à procura de exemplos malucos sobre cabalas desse género, leia as discussões entre externalistas e internalistas (e.g.: num zoo, como possa saber que o que penso ser uma zebra não é, na realidade, uma mula pintada para parecer uma zebra, porque o zoo não tem dinheiro para uma zebra verdadeira? O exemplo não é meu, repito). Pelo contrário, que «uma linha recta é a distância mais curta entre dois pontos no espaço» é necessário: nenhuma cabala invalidaria isto. Se é necessário, é justificado a priori, se é necessário, é verdadeiro, se é verdadeiro e justificado, é conhecimento, se é conhecimento, então o Trilema está errado.
Aristóteles, Política (Oxford, Clarendon Press.: 1957) (ed.: W. D. Ross). (disponível online na plataforma Perseus).
Descartes, Meditations on First Philosophy (CUP: 1996) (ed.: John Cottingham).
G. Diker, 'Descartes' Ontological Argument', capítulo 4 de Diker, Descartes (OUP: 1993), 153-176.
Kant, Critique of Pure Reason (Penguin, London: 2007) (transl.: Marcus Weigert baseado em Max Müller).
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