terça-feira, 21 de outubro de 2008

ANÁLISE DE (2) E (3)
(CIRCULARIDADE & ARBITRARIEDADE)

(21.10.2008)

[§18] Passemos agora à análise de (2). Prometemos em §3 ilustrar a seu tempo o ali dito e deslindar a macarrónica matemática. Por conveniência, recuperemos as nossas já icónicas personagens, Lorelei e Eufrosine, continuando a sua conversa depois de §9.
Euf.: Como sabes que ele nunca te mentiu?
Lor.: Ele mesmo, no outro dia, confessando-me a sua amizade, como prova dela, relembrou-me que, ao contrário do que faz com as outras pessoas & deuses, a quem, por gozo (e por ser esse o carácter dele), mente descaradamente, apenas pelo prazer infantil de ser maroto, a mim jamais me enganara.
Tornámos a resposta de Lorelei (P4) propositadamente longa para, o melhor possível, tentarmos nós, como um Hermes, enganar o leitor. Quem, porém, não perdeu o fio de Ariadne no labirinto da resposta de Lorelei, notou, certamente, de que esta enferma de um vício lógico: apresenta como justificação daquilo que pretende provar exactamente isso: aquilo que pretende provar. Se transformarmos, como até aqui temos feito, o diálogo num esquema lógico de proposições e silogismos, será então talvez mais fácil apercebermo-nos disso:
P1S3 (=P1S1 =CS2): O que Hermes diz é verdade.
P2S3(=P4): Hermes diz que nunca me mentiu.
CS3 (=P3 = P2S2): Logo, Hermes nunca me mentiu.
A primeira premissa do silogismo, P1S3, é a mesmíssima coisa que se tentou provar em S2 (é a conclusão deste), silogismo que não convenceu Eufrosine, que por isso continuou a pedir justificações, interrogando as premissas.

[§19] É preciso percebermos que, quando chegamos a S3, nada do que foi dito antes se encontra ainda justificado: pelo contrário, o diálogo prossegue em busca de uma justificação para as premissas que apoiavam os silogismos que apoiavam as premissas de P1, a proposição original, e conclusão do primeiríssimo silogismo, destinado, teoricamente, a prová-la.

[§20] Ou seja: se nada anterior está provado, e se Lorelei usa como uma das suas premissas (P1S3), para justificar uma proposição anterior (P3), uma proposição antiga (P1S1=CS2) que, porque não a conseguiu justificar na altura, é que tem agora de justificar a proposição, em que, seguindo {s1}, se encontra agora (P3); se, dizíamos, Lorelei recorre, para base de justificação do que agora tem em mãos (P3), a uma proposição (P1S1=CS2) que, em última análise, é o que, indirectamente, se encontra a tentar provar por meio da justificação da actual (P3); então, parece claro que incorre no pecado da circularidade, tomando por justificado aquilo que ainda não o está, criando uma cadeia de argumentos que morde a sua própria cauda, como um uroborus: essa é, aliás, a imagem mais perfeita deste género de argumentação.

[§21] À parte da diarreia diagética do parágrafo anterior, é bastante straightforward, para quem leia o esquema lógico de S3, que aquilo não pode, jamais, ser um argumento válido, partindo da mesmíssima coisa que intenta provar. Verifica-se assim a opção (2), prevista no Trilema. Isto constitui uma prova da impossibilidade do saber se, e apenas se, considerarmos que a circularidade de um argumento é um pecado lógico e automaticamente não o qualifica para ser (b), impossibilitando-o então de ser considerado conhecimento pela própria definição de conhecimento que demos (quanto àqueles que colocam esta em causa, a seu tempo, naturalmente, se discutirá isso). Um meio de desfazer o Trilema, então, será considerar que uma justificação circular é uma justificação válida: chamemos a esta hipótese COK - Circularidade OK. Não me parece que seja isto que o coerentismo (talvez a doutrina epistemológica mais próxima disto) defenda e, se não for, como penso, não o discutiremos aqui, pelo menos a este propósito não. No entanto, estou ainda a fazer as minhas leituras, para confirmar se esta minha impressão forte é verdadeira ou não.

[§22] Retomemos a conversa de Eufrosine e Lorelei, mais uma vez a partir de §9.
Euf.: Como sabes que ele nunca te mentiu?
Lor.: Porque confio nele.
Euf.: Então, e porque é que confias nele?
Lor.: Ora! Porque confio nele e ponto final. Hoje deu-te para chatear! Queres vir ao velório ou não?
[§23] O que aconteceu foi que, muito simplesmente, Lorelei interrompeu {s1} numa proposição, não avançando nenhuma nova proposição em defesa desta última. Poder-nos-emos perguntar se esta paragem é, ou não, arbitrária, como (3) proclama. Tendo meditado sobre o assunto, parece-nos que, em obediência estrita à definição de conhecimento que demos em §1, e à lógica dedutiva do conhecimento que o Trilema pressupõe e desmascarámos no post anterior, não há senão duas possibilidades: ou a interrupção se dá numa proposição que exigiria justificação e para a qual S se recusa a apresentar justificação, pelo que, mesmo que até aconteça que a proposição seja verdadeira, ela será sempre não mais do que true belief e nunca justified true belief = knowledge; ou a proposição em que {s1} se interrompe é auto-justificativa, sendo que então o problema se põe nos termos expostos em §17, ou seja, em saber se proposições dessa natureza são ou não são possíveis.

[§24] Poder-se-ia, por fim, argumentar que o arbítrio é, em si mesmo, um critério de justificação, e que a proposição que interrompe {s1}, porque o faz arbitrariamente, se torna, automaticamente ou em certas condições a definir, (b). Isto parece-nos highly unlikely, e não cremos que seja uma objecção ao Trilema com pernas para andar. No entanto, em estrita obediência aos critérios metodológicos que nos têm guiado, aqui registamos esta possível forma de contornar o riso de Agripa (sim, que ele deve estar deliciosamente a rir-se de todos nós, os patetas).

Nos próximos posts, em princípio, mas sem promessa, analisaremos a natureza de S e P. Os critérios (a) e (b), da definição de conhecimento em que assenta o Trilema, serão ainda estudados. Depois de procedermos a estas investigações, e, no processo delas, identificarmos todos os putativos meios de derrubar o Trilema, entraremos na segunda fase do nosso enquiry, em que analisaremos exactamente esses mesmos possíveis meios de contornar o Trilema, inquirindo a sua legitimidade e capacidade para o fazerem. O essay, em princípio, conterá ainda uma terceira parte, em que se analisará uma possível objecção ao Trilema não tanto de pormenor, mas uma que o questiona na sua globalidade, impossível de ser contornada: não é o Trilema, em si mesmo, ao proclamar a impossibilidade de saber, mas apresentando-se como um item de conhecimento, um paradoxo? Esta é, por ora, a estrutura que pretendemos seguir: está sujeita, como até - e especialmente - as nossas opiniões, a mudanças.

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