domingo, 19 de outubro de 2008

ANÁLISE DE (1)
(A REGRESSÃO INFINITA)
(19.10.2008)

[§6] De acordo com (1), para justificação de um qualquer proposição (Pn), é necessária outra proposição (Pn+1) que torne Pn em Pn (b). Antes de analisarmos como se poderia objectar a isto, convém que analisemos com cuidado a claim feita em (1). Argumentaremos em seguida que, na realidade, Pn+1 esconde um silogismo, que, pela própria forma do silogismo, apresenta então não apenas uma proposição, mas duas, e que são essas duas que servem de justificação a Pn. As implicações disto serão expostas mais abaixo, revelando uma maior complexidade de (1) e do Trilema.

[§7] Tentemos ilustrar isto para o leitor comum. Veja-se o seguinte diálogo entre Lorelei e Eufrosine:
Lor.: A Eurídice morreu.
Euf.: A Eurídice? Não acredito.
Lor.: Disse-me o Hermes Psicopompo em pessoa.
É fácil identificar a primeira fala de Lorelei com P1 e a segunda com P2. Como dito em §6, a uma análise cuidada, porém, revela-se que P2 é, na realidade, não uma proposição isolada (ainda que seja nessa forma que se manifesta), mas sim um silogismo, S1 (não confundir com {s1}, definido em §3 como a sequência de proposições de uma regressão infinita). De facto, P2, per se, não torna P1 (b): não justifica nada, aliás. P2 só pode tornar P1 (b) se, e apenas se, entendermos P2 como uma das premissas de S1. Assim,
P1: A Eurídice morreu.
P2: Disse-me o Hermes Psicopompo em pessoa.
em que P2 é
S1
P1S1: O que Hermes diz é verdade.
P2S1 (=P2): Hermes disse-me que Eurídice morreu.
CS1 (=P1): Logo, Eurídice morreu.
legenda: P1S1 (primeira premissa do silogismo 1), P2S1 (segunda premissa do silogismo 1), CS1 (conclusão do silogismo 1).
Conclui-se assim que, na realidade, P1 é só metade justificado por P2. O que verdadeiramente justifica P1 são as premissas de S1, o qual engloba não só P2 (sobre a designação, nesse contexto, mais correcta de P2S1), mas também P1S1. É a combinação destas duas proposições (as premissas do silogismo: P, aliás, nas siglas dessas proposições, é abreviatura não de «proposição» mas sim de «premissa») que torna P1 (b).

[§8] Se P1 é (b) em virtude de P1S1 e P2S1 juntas, então, de acordo com (1), é necessário justificar não apenas P2 (=P2S1), mas também P1S1.

[§9] Continuemos o eavesdropping:
Euf.: O Hermes é um brincalhão. Como sabes que ele não te estava a enganar?
Lor.: Ele a mim nunca me mentiu.
Eufrosine questionou P1S1 e, em resposta, Lorelei apresentou P3, que sabemos, em virtude do exposto em §7, não ser mais do que P2S2. O esquema lógico em baixo explicará porventura isto melhor:
P1S2: Hermes não altera o seu comportamento.
P2S2 (= P3): Hermes nunca me mentiu antes.
CS2 (= P1S1): Logo, o que Hermes diz agora é verdade.

[§10] O que Eufrosine questionou foi o critério de verdade utilizado por Lorelei. De uma maneira geral, P1S1 tende a ser, de facto, mais ou menos conscientemente, um critério de verdade. O problema com apresentar um critério de verdade (CV) será que I («I» significa o interlocutor de S, neste caso, Eufrosine, sendo Lorelei a encarnação de S) quererá de imediato uma justificação desse mesmo critério, i.e., razões para aderir a ele, ou seja, quer confirmar que P1S1 é (b).
Isso o que sucede em §9, em que o nosso S, Lorelei, procura justificar, via duas novas proposições (P1S2 & P2S2), P1S1, o CV usado para justificar P1. O problema com isto é que:
α) para S apresentar P1S2 & P2S2 é porque acredita nelas;
β) se acredita nelas é porque as considera verdadeiras;
γ) se as considera verdadeiras, está a pressupôr um CV (chamemos-lhe CVb) que as torna verdadeiras;
logo
δ) ou CVb (que justifica/torna verdadeiras P1S2 & P2S2, que em conjunto justificam P1S1, que, por sua vez, é o CV - chamemos-lhe CVa - usado para justificar P1, a proposição original); ou, dizíamos, esse CVb ≠ CVa, e, então, as dúvidas levantadas em torno da legitimidade de CVa aplicam-se também com propriedade a CVb, forçando à justificação desse, e lançando-nos na regressão infinita prevista em (1)
ε) ou CVb = CVa, usando-se assim como justificação aquilo que se procura precisamente demonstrar: o argumento é circular e confirma-se a previsão (2) de Agripa.

[§11] Assim, se, mais adiante no nosso enquiry, não conseguirmos vislumbrar forma ou de desmontar (1), revelando as suas pretensões infinitas falsas, ou de quebrar (2), mostrando-o não necessariamente inválido, de um ponto de vista filosófico, então, somos forçados a concluir que, em obedeciência à sabedoria de Agripa, é impossível a justificação de qualquer CV, pelo que, a priori, uma vasta proporção de enunciados, são logo impossíveis de justificar (confirmando desse modo o Trilema), pela razão, descrita em §10, de que a maioria das proposições originais (P1) são justificadas, pelo menos em metade, por um P1S1 que é um CV, quer S disso se aperceba ou não.

[§12] Outro, porém, poderia ter sido o caminho da conversa. Num universo paralelo (aqui professo a minha fé neles), Eufrosine, em vez de ter interpelado Lorelei a respeito de P1S1, poderia tê-la questionado sobre P2S1, mais facilmante chamada de P2. Escuta, Israel e leitor do blogue:
Euf.: Como sabes que Hermes te disse isso e que não estavas apenas, por exemplo, a sonhar?
Lor.: A sua voz foi clara e distinta.
Não porque isso tenha, aqui e agora, particular interesse, mas tão somente para manter coerência com a metodologia que temos vindo a seguir, demos a formulação lógica disto:
P1S2b: O que é claro e distinto é verdadeiro.
P2S2b (=P3b): A sua voz foi clara e distinta.
CS2b (= P2 = P2S1): Logo, foi Hermes em pessoa que me disse que Eurídice morreu.
(legenda: o b é usado aqui para mostrar que este é o silogismo que decorre da segunda premissa de S1, por oposição a S2 que é baseado na primeira premissa de S1: S2 e S2b, porém, é que, em conjunto, seriam eventualmente capazes de justificar as premissas de S1, validar a conclusão deste e, assim, justificar P1)

[§13] Com S2 e S2b, como se acabou de dizer, P1 seria (b) (note-se o condicional «seria»: não o é, porque, de acordo com (1), as premissas dos dois silogismos precisam agora elas de justificação). Como se viu em §10, há, de facto, uma tendência para as proposições, quando desdobradas em silogismos, conterem um critério de verdade implícito numa das premissas, critério esse que, obviamente, é normal que I (o «interlocutor», relembramos) venha a questionar. Assim, desdobrando P3b no silogismo S2b, descobrimos em P1S2b um CV: «o que é claro e distinto é verdadeiro» (este é, como se sabe, o CV de Descartes, mesmo se aqui, propositadamente, καὶ παίζων (Pl. Smp. 172a.4), fazemos misuse dele). Talvez se pudesse arriscar dizer que, a dada altura em {s1}, forçoso será que se aborde a questão do CV. Não ousamos no entanto fazer tal ousada afirmação, pelo menos por ora. Poderá ser que, no decurso da nossa investigação, até venhamos a descobrir algo sobre esta matéria: tal não sucedeu ainda, porém. (aqui se agradeceriam muito sugestões dos leitores).

[§14] Ainda que a objecção levantada por Eufrosine, no universo alternativo, seja perfeitamente válida de um ponto de vista filosófico, é indubitável, cremos, que, numa conversa normal, a objecção mais rapidamente levantada a S1 centrar-se-ia em P1S1 e não em P2S1. Meditando sobre a questão, pareceu-nos constarar que há, de facto, uma tendência para que seja a premissa não-explicitada (P1S1, ou confirme o leitor com os demais exemplos: P1S2 e P1S2b) aquela a que I mais rapidamente levanta objecções (e I é um elemento fundamental para que o Trilema funcione). Não é por ser não-explicitada que ela deve ser mais ou menos objecto de interrogação no apuramento da verdade. É importante reter isto: toda a P1+x desdobra-se sempre num silogismo, que, pela própria definição de silogismo, tem duas premissas, ambas passíveis de dúvida (até prova em contrário, isto é, até se conseguir - se é que é possível, não o sabemos - desmontar o Trilema).

[§15] Do dito acima é forçoso concluir então que as proposições em {s1} crescem numa progressão geométrica (o que vai complicar ainda mais a justificação de P1). Significa isto, de acordo com a nossa investigação, que, ao contrário do que se diz, não basta justificar um dos membros da sequência {s1} para que de imediato os demais fiquem justificados automaticamente: o trabalho é bem mais árduo - é necessário justificar uma série crescente de proposições só para que uma (P1) seja justificada também.

[§16] Analisado exactamente o que (1) implica, resta agora determinar como eventualmente poderia o argumento da regressão infinita ser desfeito. Não era óbvio antes, mas vimos como cada proposição avançada em defesa de outra esconde, na realidade, um silogismo do qual dedutivamente se conclui a proposição que se quer defender e que justificou a apresentação desse mesmo silogismo. Tal estratégia de justificação, que o Trilema pressupõe, parte, por sua vez, do pressuposto que a verdade é de natureza dedutiva e só as justificações dedutivas são portanto válidas. Um meio de destruir (1) - e, desse modo, o Trilema - seria provar que há meios não-dedutivos de justificação de proposições. Chamemos a esta técnica: JND - Justificação Não-Dedutiva. Se é ou não possível argumentar a favor disto, será algo com que nos preocuparemos numa fase mais adiantado do nosso ensaio.

[§17] Um segundo meio de rebater (1) seria argumentar que nem todas as proposições exigem um silogismo que as defenda e justifique, defendendo que algumas se justificam a si mesmas e são válidas per se, sem necessidade de nova proposição/silogismo que as torne (b). Precisaríamos no mínimo, claro, de duas dessas proposições auto-sustentáveis, que se articulassem num silogismo para criar novo conhecimento (a não ser que o paradigma do silogismo fosse ultrapassado e de uma só proposição auto-justificada construíssemos todo o resto do edifício do saber. um homem propôs mais ou menos isso: Descartes - se podemos dar a nossa opinião sobre o assunto, falhou redondamente).
O fundacionalismo defende precisamente isto: a existência de crenças básicas, auto-evidentes e auto-justificadas, sobre as quais todo o restante saber deve ser construído. É o que Sosa (1995: 342) e outros designam como o modelo da pirâmide, em que o vértice seria P1, a proposição original, e a base seria constituída pelas crenças básicas que, directa ou indirectamente, justificam P1. Os argumentos fundacionalistas serão, como é fácil perceber, analisados com cuidado aqui, a seu tempo: por ora, é ainda cedo. Fica a nota de que isto poderá ser, se resultar, um caminho para destruir o Trilema.

BIBLIOGRAFIA:
E. Sosa (1995), ‘The Raft and the Pyramid’, Moser & Vander Nat (eds.), Human Knowledge (OUP), 341-356.

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